Medicina Legal

Giselle já estava no final da consulta com o Dr. Fantástico. Ele era clínico geral. Ela nunca ia ao médico, relapsa que era com a sua saúde. Mas, quando ia, tinha que ser no Dr. Fantástico. Estas consultas poderiam se comparar com a passagem do Cometa Halley: demoravam pra acontecer, PORÉM, causava impacto!

- Menina, vc está a flor da pele! Tem que espairecer! Relaxar. Sabe o que eu vou fazer depois que sair da clínica?

Ela jurava que ia lhe ser feito um convite. Talvez, para alguma coisa indecorosamente saudável, tipo tomar um remédio num ambiente escuro e com terapia sonora, dieta de luz negra, num local igualzinho aquela clínica: também pago por hora, porém, com uma "maca" redonda. Mas, não! Ele ia jogar tênis.
Tuuuuuuuudo bem! Só aquele homem alto, fantástico, cheiroso e com um sorriso de uma orelha na outra, na frente dela, já era uma dose bem aprazível do que realmente precisava.

- Se for pra me dar remédios, Dr. Fantástico, nada de faixa preta! - disse olhando naqueles olhos que "Jesus Toma Conta", citando Djavan - Não gosto de artes marciais e não tenho a menor vocação para ser "serviçal do Samurai".

Giselle tinha mesmo era medo de sair de uma dependência e entrar noutra. Se bem que naquela altura, marcaria todos os dias consultas com aquela preciosidade (God Save a Golden Cross, Unimed e todos os planos de saúde! ). Só de consultar com aquele ... aquele ... "homem", já estava bem. Esqueceu dos problemas. Aliás, que problemas? Ela poderia jurar que foi ele quem disse a primeira vez: "Levanta-te e anda!"... Milagroso

- Olha, Giselle - com indisfarçável sorriso e uma ponta de aflição - Você pode ficar quieta um minutinho, para que eu escreva a receita, ou, então ...
- Ou, então ... - disse ela, deixando pendurado na atmosfera a mais indecente das propostas.

- Meu Deus! - Dr. Fantástico, não resistiu ao jeitinho sacana da menina e caiu na gargalhada.
- Onde? Onde? - fazendo como se procurasse o Deus e já mostrando o "sorrisão sunshine", como Tang, conhecido em mais de 70 países - Ah! Pára né, Dr. Fantástico! Imagina só! Um homem sem fé, doutor das ciências médicas, chamar o nome do Todo Poderoso pra auxiliar numa simples consulta! Se ainda fosse uma cirurgia no cérebro!

- Menina, vc é atacada!
Ela levanta num ímpeto de "valha-me-deus" e vai até a parede, onde está o reluzente diploma. Aponta para o objeto como se fosse a última bolachinha do pacote:

- Que qui é isso!? Eu marco consulta com um médico e ele fala como o povão? - tentando parecer séria - Atacada? É algum termo científico? É grave? Contagioso?
Queria mesmo era ter dito, atacada é que estou querendo ser pelo Doutor.
Alto lá! Já estava de bom tamanho: nem era Domingo e ela estava assistindo "o" Fantástico na sua frente: de carne, osso, dentes e perfume, jaleco branco ... Fantástico sem Glória Maria, mas cá pra nós, era a GLÓRIA!

- Menina! Cada consulta com você é um parto!
- Que é isso, doutor!? Eu sou advogada, não obstetra!
Dr. Fantástico faz cara de emburrado!
- Não me deixa nervoso, não! Que eu erro a receita! Caraca, Gica, vc é impossível!
- Impossível! Impossível! - repetiu como se ele tivesse dito: inconstitucionalissimamente - Eu sou um amor de pessoa!

- Eu sei! Eu sei que você é um amor de pessoa. Isso é um perigo! Se vc não fosse um amor de pessoa eu não brincava com você....

Ele tava brincando? Ela estava levando aquilo a sério, pôxa!
- Olha, Gica! Consultar você é um parto porque não é fácil, vc quer explicação pra tudo, toma cada ponto do que eu digo como uma injeção letal ... e ...e... eu fico nervoso com mulheres inteligentes!
- Eu fico nervosa com homens bonitos! - Ela falou aquilo ou só pensou! Replay, pelo amor de Deus! Disse mesmo? Disse! Era só observar a cara dele pra ter certeza que tinha falado. Porém, cadê coragem de olhar pra ele!? Tinha dito mesmo! Pronto! Assédio! Era assédio? Nome jurídico pra cantada mal passada! Quando uma cantada é bem passada é medalhão digna de um Roberto Carlos. Tipo Amada Amante! Portanto, aquela ultima frase de Giselle, definitivamente era Assédio!

- Menina! Isso é uma clínica!
- Desculpa, Dr. Fantástico! Quer dizer, Dr. Marcelo!
- Ahhhhhh, fica sem graça não! Vamos dar uma olhada nos seus exames novamente - disse pegando o envelope e fazendo aquela cara de "finalmente-desconcertei-a- danada!" - É! Você está bem. Muito bem! Porém, aqui diz que você deve continuar me chamando de Dr. Fantástico, porque faz bem pro coração! Pro seu e pro meu!
PÁRA! PÁRA!
- Dr. Fantástico! Isso aqui é uma clínica!
Ele ri! Tenta concentrar! Rá rá rá! Impossível, ela devolve para ele uma dose do seu próprio remédio! Nada de genéricos.
- Bom, do coração vc não morre!
- Doutor, o senhor pode me dar certeza disso? Olha, que o meu coração é igual ao da Elba Ramalho " já está acostumado, a ser maltratado, a não ter direito".
- Pelo seus exames, não tem jeito de nada entupir no seu coração nos próximos 150 anos ... Agora, de taquicardia, eu não garanto!
- Eu vou viver 150 anos?
- Ai! Não dá pra dizer nada pra vc!
- Só o que eu quero ouvir! - como se fosse mensagem subliminar - 150 anos?
- Não, Giselle Cristina! Pode ser que um médico te mate agora! - disse sorrindo e carimbando a receita.
- DOUTOR! Me matar? O senhor iria contrariar o seu juramento de Arquimedes?
- Hipócrates, menina! Hipócrates!
- Ah, Dr! Arquimedes, Hipócrates, Marcelo ... todos deuses gregos... - disse fingindo não saber .....como se não tivesse a jogada ensaiada.
- Giselle! Faz favor ...- ele corou! Caixão! Agora já era! Causa Mortis: cantada barata.
Sem nem interromper o que estava falando, ela continua ...
- E depois, isso é outra coisa que eu tinha que lhe contar .. esses pensamentos recorrentes de Arquimedes ....
Agora já estava improvisando. Tinha pensado na história da alavanca, mas a da banheira era bem melhor. Agradeceu ao querido professor chato de física e sua maldita hidrostática
- Sabe, Arquimedes, banheira ... hidro .... massagem!
- Vc precisa é de um banho frio, menina! Fica quieta que eu vou fazer outra receita! Essa aqui vai ser só perfumaria pra você!
Ele ficou realmente sério.
Giselle perdeu o rebolado. Lembrou de todas as coisas que tinham lhe levado a marcar aquela consulta: as noites insones (assistiu todos os jogos de volei masculino do Japão nas madrugadas), falta de concentração, enfim, uma série de coisas grandes e pequenas ....
O clima ficou pesado! Ele sentiu o que ela estava sentindo. Preocupação.
- Calma, menina! O mundo é pra cada dia. Calma.
- Tá Dr. - resolveu vestir a conversa com seriedade e o Dr. Fantástico com o seu jaleco e outras roupas, que já tinha tirado com os olhos - Brincadeiras de lado, eu sei que preciso tomar alguma coisa ...
Dr. Fantástico, no mesmo tom de funeral de palhaço, entregando o papel que continha a fórmula mágica, diz:
- Pra começar: tomar juízo! E depois, esse remédio antes de dormir...
Giselle ficou olhando a receita como se tivesse sido escrita por Arquimedes: em grego. Pegou a bolsa, o resto do seu charme e a cara do chão, quase enfiando a cara e as propostas indecorosas na bolsa, e foi levantando:
- Muito obrigada, Dr. Acho que se eu dormir uma noite inteira vai ser muito valia...
Estendeu o braço por cima da mesa para o cumprimento de despedida, mas diante daquela carinha dele"agora ela nunca mais vai brincar comigo" , Gica remenda :
- Fazer com que eu durma, vai valer todos os seus anos da faculdade de medicina, aquela sua época solitária.... só o senhor e os livros ...sonhando com pacientes loiras, altas e lindas como eu...
Grande! Ele sorriu grande. Gostoso. Sorriso intravenoso. Sorriso que circulava mais do que o metrô em São Paulo.
- Cada vez que vc vem aqui, eu agradeço a Deus por ser: Clínico Geral e Geriatra.
Dizendo isso, abriu a porta do consultório e foi na sua direção.
- Por que? - perguntou, quase indignada, depois dos trinta anos, falar em Geriatria para uma jovem menina, pô!
No meio do abraço de despedida, reconfortante, ele peroliza:
- Porque eu vou ser teu médico pro resto da vida!
Beijou o rosto vermelho e quente de um pudor desavergonhado e nada ensaiado de Giselle.
Quase saindo, Gica, ainda dá uma viradinha nas botas de cano alto e salto fino, vendo o Dr. Fantástico parado na porta, com a mão nos bolsos de seu imaculado jaleco, não consegue deixar passar:
- Sabe o que é melhor? Eu vou viver muito! Meu médico me disse que pelo menos 150 anos. - e lhe sopra um beijo!

- Menina! Por sua causa, ainda vou ser processado pelo Conselho de Medicina!
De imediato com um arzinho de "eureka", Giselle devolve:
- Tudo bem, eu sou advogada!
Ele fecha os olhos, ela fecha a porta.